Sunday, April 25, 2010

Mr. Jones

Introdução


Gravado em 1999, Mr. Jones é uma produção bastante simplista do cinema que traz o Transtorno Afetivo Bipolar como pano de fundo, sem se aprofundar em detalhes dessa patologia tão frequente.
Dirigido por Mike Figgis e estrelado por Richard Gere, é um filme agradável e bastante ilustrativo, ainda que superficial, sendo mais uma história de amor do que uma abordagem da patologia em questão.



Música tema: I feel good (James Brown)

Bastante adequada ao protagonista, a música tema ressalta basicamente o estado de humor eufórico do paciente em fase maníaca. Humor é a instância do psiquismo responsável pela expressão dos sentimentos e das emoções que persiste durante longo período. Difere do Afeto por este ser uma expressão momentânea do estado de humor basal do indivíduo. Uma analogia interessante para diferenciar humor e afeto seria: humor está para clima assim como afeto está para tempo. Durante o exame clínico, o profissional de saúde mental avalia o afeto e, com a evolução e o acompanhamento subsequentes, torna-se possível avaliar o estado de humor de seu paciente. O humor é dito hipotímico ou deprimido quando os sentimentos estão polarizados para o pólo deprimido, com anedonia (incapacidade de sentir prazer em atividades antes prazerosas), tristeza, apatia (falta de energia), abulia (ausência de vontade de realizar tarefas), e sentimentos de desvalorização. A hipertimia define o pólo oposto, ou seja, a euforia presente na fase maníaca, com aumento desproporcional da autoestima, sentimentos de poder, superioridade e avaliação empobrecida de possíveis danos com gastos exagerados, atividade sexual desprotegida, uso abusivo de drogas, dentre outros sintomas. O estado de normalidade define o humor como eutímico.
O afeto é a manifestação instantânea, aguda, momentânea do humor e varia com os diferentes estímulos do meio, sendo possível para um paciente com humor deprimido manifestar afeto eufórico caso receba uma notícia muito agradável. Nesse caso, diz-se que o indivíduo modula adequadamente o afeto.




"Paranoid Schizophrenia?"


O primeiro diagnóstico dado foi o de Esquizofrenia Paranóide (F20.0, segundo a décima edição da Classificação Internacional de Doenças, CID10), provavelmente baseado unicamente no relato de Howard, o carpinteiro que conheceu Mr. Jones na obra em que trabalhava e que o levou ao hospital quando este subiu no telhado afirmando que desejava voar. A cena em que o protagonista sobe no telhado e afirma ser capaz de voar (pensamento delirante, ou seja, um julgamento falso acerca de suas próprias capacidades) levou ao diagnóstico supracitado de forma erroneamente direta. No entanto, deve-se observar que, afora as percepções delirantes, Mr. Jones não apresenta outros sintomas psicóticos, como alucinações, fenômenos relacionados ao pensamento: eco, roubo, inserção ou irradiação (esses sintomas serão oportunamente discutidos na postagem sobre esquizofrenia) ou desadaptação social importante prévia. É também mandatório observar as alterações do humor, de forma a traçar uma diferença básica entre um delírio de superioridade (sou capaz de voar), presente em um episódio maníaco, de um delírio de perseguição, muito comum na esquizofrenia, em que o sujeito se sente perseguido por pessoas, entidades, instituições, etc, situação em que se vê pressionado por forças contra as quais é incapaz de lutar e acaba cometendo atos suicidas.
Assim, o diagnóstico foi dificultado pelo fato de não haver dados suficientes sobre o quadro do paciente, sendo retardado e levando a um tratamento ineficaz com antipsicótico (Haldol, o haloperidol), que atua apenas reduzindo os delírios e a intensa agitação psicomotora à qual nosso paciente estava sujeito sem, no entanto, tratar a causa base do desequilíbrio.




Dr. Elisabeth Bowen


Mostrada como desorganizada, meio desleixada, atrasada e atrapalhada, a psiquiatra do filme é posta paralelamente ao protagonista-paciente, sendo mostrada no mesmo patamar que este e ingressando mais do que deveria em sua vida. Durante o filme ela comete vários erros relacionados ao estabelecimento de uma relação médico-paciente adequada. Mostrava-se desatenta durante as consultas, perdida em seus próprios problemas e visivelmente entediada, não demonstrando interesse pelo que os pacientes relatavam. Em um momento da narrativa, ela viola a privacidade de seu paciente ao buscar informações sobre sua vida pessoal sem pedir a sua permissão. No entanto, mostra-se bastante competente ao avaliar o caso de Mr. Jones corretamente. Outro ponto a favor de sua conduta é a relação de confiança que ela estabelece com Amanda, uma paciente de origem oriental portadora de depressão.
Outras críticas à psiquiatra se fazem no quesito da necessidade de se manter uma distância segura de seu paciente, distância essa quebrada várias vezes ao longo do filme, quando a médica oferece carona ao paciente, perde a paciência e grita com ele e afaga seus cabelos quando esse entra em depressão. Manda a ética que, quando a relação médico paciente se transforma em uma relação mais próxima, a(o) médica(o) transfira esse paciente aos cuidados de outro profissional.



"I think he was misdiagnosed. He was psychotic, but not squizophrenic. He was expansive, intrusive, unappropriate, euforic. He was maniac."

O quadro clínico do episódio maníaco (F30) está bem representado no filme, através de um protagonista alto astral, charmoso, inteligente, expansivo, autoconfiante, com sua energia extremamente aumentada (nada o cansa), redução da necessidade de sono (sente-se revigorado após três horas de sono apenas) e taquilálico (fala muito rápido, porque o ritmo de seu pensamento está acelerado, o que se denomina taquipsiquismo). A cena inicial do filme mostra Mr. Jones pedalando mais rápido do que os outros ciclistas, cantando, apresentando humor eufórico e agitação psicomotora. Ao chegar numa obra ele afirma: "I'm the new carpenter. (...) I'm a precision machine. I can do twice the work any of these guys do. I swear." Provavelmente ele nunca trabalhou como carpinteiro, mas acreditava ser capaz de realizar essa tarefa com precisão e habilidade extremas. No ambiente de trabalho, ele se apresenta falante, puxa conversa com todo mundo, tem visivelmente mais energia que todos os outros trabalhadores, cadencia suas marteladas com as do colega Howard, de forma a parecer musical (a essa alteração da sensopercepção damos o nome de Hiperpercepção, em que as sensações estão extremamente aumentadas e o paciente "enxerga" o mundo dotado de um brilho especial, com nitidez e vivacidade únicas; por isso para Mr. Jones simples marteladas transformam-se numa verdadeira orquestra cadenciada). Observa-se também gastos exagerados, quando ele oferece dinheiro a um trabalhador que acabara de conhecer e, posteriormente, quando compra um cachorro quente com uma nota de cem dólares, deixando o troco para o vendedor; quando compra mais de um piano e quando se hospeda num hotel de luxo com uma moça que também acabara de conhecer e faz pedidos extremamente caros. Num momento posterior da narrativa, quando Jones relata sua infância e adolescência, ele afirma que aos três anos de idade já tocava Mozart, aos dez já tinha lido tudo e aos dezoito era o centro do universo, quando então acordou num hospital psiquiátrico.
Outras características apresentadas são: hipervigilância (muda constantemente o foco de sua atenção e, numa dessas mudanças, nota que a médica divorciou-se recentemente por ter notado ainda a marca da aliança em seu dedo) e hipotenacidade (incapacidade de sustentar o foco em um único ponto, ou seja, quando solicitado que se concentre, ele é incapaz de fazê-lo). Para se definir um episódio maníaco, os sintomas devem estar presentes durante um mínimo de uma semana (se durarem mais de quatro dias e menos de uma semana, diz-se que o episódio é hipomaníaco, não havendo nenhuma diferença em termos de sintomas segundo a CID10). Ao longo do filme o paciente acaba desenvolvendo sintomas depressivos, contudo não fica muito clara a duração desse episódio, para que possamos defini-lo como episódio depressivo maior (F32), pois este deve persistir por mais de duas semanas para que possa ser fechado o diagnóstico. Durante a fase depressiva de Jones, observa-se que ele perde o cuidado com a higiene pessoal, apresentando-se sujo e mal vestido, com a barba por fazer e o cabelo desorganizado. Anda na rua de forma desatenta, sendo quase atropelado numa cena, muito lentamente (lentidão psicomotora). Seu pensamento agora tem um curso mais lentificado e ele não mais consegue fazer contas de cabeça, seu raciocínio encontra-se visivelmente prejudicado. Há, também, labilidade emocional perceptível, choro fácil e intensa angústia. A abulia manifesta-se pela falta de vontade em participar das atividades em grupo propostas no hospital, bem como de realizar quaisquer outras atividades.
      Resumo dos sintomas principais da Mania:
  • Humor eufórico, expansivo ou irritável (pavio curto)
  • Aumento da energia e nível de atividade (mais produtivo, mais criativo no trabalho)
  • Hiperpercepção (sentidos aguçados)
  • Taquilalia (fala muito rápida)
  • Taquipsiquismo (pensamento de curso rápido)
  • Agitação psicomotora sem cansaço proporcional(inquietude)
  "-Now you're very agitated.
   -I am agitated.
   -And very tired.
   -I'm not tired. I'm not tired."
  • Aumento da impulsividade (gastos excessivos, sexo desprotegido, volubilidade)
  • Ideias grandiosas, autoestima exacerbada, otimismo exagerado (galanteador)
   "I have a big personality, I'm grandious."
  • Sintomas físicos: redução da necessidade de sono, aumento da libido
     Resumo dos sintomas depressivos:
  • Humor deprimido, irritável e/ou falta de interesse, motivação e de vontade (abulia)
  • Redução da energia (apatia) e fatigabilidade
  • Redução da capacidade hedônica (cujo extremo é a anedonia)
  • Lentificação psicomotora
  • Pensamentos e sentimentos negativos (de inferioridade, de menos valia)
  • Sintomas físicos: insônia/hipersonia, aumento/redução do apetite e/ou peso, dores difusas


"My old friends called Lythium, four a day, everyday. Keep us high and low is away."

O tratamento do Transtorno Afetivo Bipolar depende, obviamente da fase em que o paciente se encontra. Na fase maníaca a administração isolada de estabilizadores do humor se mostra suficiente. Os estabilizadores de uso mais comum são o Lítio, o Valproato de sódio/Ácido Valpróico e a Carbamazepina.
O estabilizador mais antigo, descoberto como eficaz na mania em 1949, o Lítio pode ser usado nas formas de carbonato ou de citrato, ambos de igual eficácia, já que a substância ativa é o íon lítio.Seu mecanismo de ação ainda não está bem compreendido, mas o lítio se mostrou superior ao placebo em todos os estudos realizados tanto para evidenciar sua eficácia no tratamento da mania aguda quanto na prevenção da recorrência de novos episódios. Contudo, seu efeito antidepressivo não é clinicamente significativo. O lítio é mais eficaz na sequência mania-depressão-eutimia, quando o paciente já respondeu favoravelmente ao tratamento com lítio e na mania pura ou clássica.
O ácido valpróico e seu correlato valproato de sódio mostrou-se superior ao placebo e comparável ao lítio no tratamento da mania aguda e na prevenção de novos episódios maníacos. Mostra-se superior ao lítio em casos de episódios mistos (quando os sintomas maníacos e depressivos oscilam num período muito curto de tempo, como dias ou semanas), cicladores rápidos (apresentam 4 ou mais episódios distintos em um ano), início tardio dos sintomas e/ou curta duração da doença, história de vários episódios anteriores e sequência depressão-mania-eutimia.

Outros fármacos utilizados como estabilizadores do humor são a carbamazepina, a oxcarbazepina, a lamotrigina, o topiramato, a gabapentina e os antipsicóticos modernos (clozapina, olanzapina, risperidona, ziprasidona, quetiapina e o aripiprazol).
Como opção para a fase depressiva podemos utilizar os Inibidores Não Seletivos da Recaptação de Monoaminas (Serotonina, Noradrenalina e Dopamina), que atuam ocupando os receptores responsáveis pela recaptação dessas monoaminas, de forma a mantê-las mais tempo na fenda sináptica. A essa classe de antidepressivos pertencem os tricíclicos e heterocíclicos, como a amitriptilina, a nortriptilina, a imipramina, a clomipramina, a desipramina e a desmetilclomipramina. Esses fármacos são extremamente eficazes na depressão, entretanto possuem vários efeitos colaterais (hipotensão postural, boca seca, diminuição da libido, anorgasmia, sedação) e um baixo índice terapêutico, ou seja, a dose terapêutica é muito próxima da dose letal (o que torna essas drogas perigosas em superdosagem). Outro problema no uso dos INSRM é que esses fármacos, mesmo quando associados a estabilizadores do humor, apresentam altas taxas de virada maníaca observadas quando pacientes com depressão bipolar os utilizam. Virada maníaca é um termo utilizado para citar o desencadeamanto de crises maníacas quando um paciente com depressão bipolar faz uso inadvertido de antidepressivos.
Outra opção são os Inibidores Seletivos da Recaptação da Serotonina (ISRS), que, por possuírem ação mais seletiva, apresentam um melhor perfil de efeitos colaterais (principalmente gastrintestinais, como náuseas, vômitos e diarreia) e são mais seguros em caso de overdose e risco de suicídio. São ISRS: fluoxetina, paroxetina, citalopram, escitalopram, sertralina e fluvoxamina.
Antidepressivos de nova geração são aqueles que atuam em dois sistemas monoaminérgicos principais (duais) e foram desenvolvidos para terem um melhor perfil de efeitos colaterais. A mirtazapina tem ação noradrenérgica e serotoninérgica e apresenta menos efeitos colaterais que os ISRS. A bupropiona atua na recaptação da dopamina (DA) e, em menor grau, da noradrenalina (NA) sendo praticamente isenta de efeitos colaterais sexuais e uma das principais escolhas no tratamento da depressão bipolar e da dependência de nicotina. Há ainda os que atuam bloqueando os receptores de serotonina (5HT) e noradrenalina (NA), como a duloxetina e a venlafaxina. Esta apresenta a peculiaridade de inibir progressivamente receptores diferentes de acordo com a dose utilizada (em baixas doses atua no sistema da 5HT; em doses intermediárias, atua no sistema da NA; e em doses elevadas bloqueia a recaptação da DA). A venlafaxina é uma opção em casos de depressão refratária ao uso de ISRS, sendo segura em altas doses e não apresenta ganho de peso como efeito colateral.
Outro medicamento seguro na depressão bipolar é a quetiapina, um antipsicótico moderno. Trata-se do único antipsicótico aprovado no tratamento da mania aguda e da depressão bipolar em monoterapia. A FDA avalia a possibilidade de aprová-lo como tratamento de manutenção na Transtorno Afetivo Bipolar.



"-Mr. Jones, you have a disease. Manic depressive disorder.
-This is not a disease. I do not have a disease. This is who I am. I like who I am, you got it?"
"You´re not a sick person, you´re a person with a sickness."


Essa abordagem foi bastante louvável por parte da psiquiatra, pois ela afasta a ligação inevitável entre ser doente e possuir uma doença. Dessa forma, ela se aproxima mais do paciente e aumenta as chances de este aderir adequadamente ao tratamento. A base de um bom tratamento é a confiança no terapeuta. Nota-se também que um paciente em fase maníaca se sente bem o suficiente para recusar seu diagnóstico, não compreendendo bem as consequências de sua doença.

Diversos estudos demonstram que a cronicidade e a gravidade dos episódios maníacos e depressivos levam à aceleração da atrofia cortical que ocorre com a idade, além de atrofia cerebelar, hipocampal e da área 24 de Broadmann, uma área localizada no córtex pré-frontal ventralmente ao joelho do corpo caloso, todas essas áreas pertencem ou se relacionam com o sistema límbico, responsável pela expressão emocional.
É importante citar que estudos com ressonância magnética demonstraram que pacientes bipolares apresentam um aumento do volume do corpo amigdalóide, um dos núcleos da base do cérebro, este responsável pela regulação do impulso sexual e da agressividade.
Por todos esses achados, a instituição precoce do tratamento medicamentoso se faz necessária, pois o tratamento do episódio atual e a prevenção do próximo tem uma notável influência na redução dessa neurodegeneração e no prognóstico.


Erro médico?!

Quando a Dra. Bowen revisa os vídeos de sua paciente Amanda, após o suicídio dessa, ela percebe que no vídeo Amanda afirmava não ter medo da morte e estar pronta para morrer. Questiona-se uma intervenção mais próxima caso a psiquiatra tivesse percebido esse estado de espírito de sua paciente. Contudo, há que se considerar a tomada de responsabilidade dos pais de Amanda para si quando da alta de sua filha.


"You're a doctor, you can fix my mind, alright?!"
Proferida por uma paciente visivelmente desesperada, essa sentança traduz toda a expectativa posta sobre o profissional de saúde mental como responsável único sobre a cura do paciente.
Essa ideia deve ser desconstruida aos poucos, sem haver, no entanto, confrontação com a pessoa que busca ajuda, pelo menos a princípio, pois isso pode interferir negativamente e inviabilizar o estabelecimento de uma relação de confiança e a adesão ao tratamento.


"Mr. Jones, the way I see it, we have two problems here. One's chemical that we'll treat. And the other one is, I think, your pain. It'll take hard work for us to get up those feelings. Do you understand? You'll work with me. Do we have a deal?"

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