Lançado em 2002, esse filme francês é uma obra extremamente elucidativa acerca de um transtorno muito pouco abordado no cinema: a Erotomania.
Tendo como protagonista a premiada atriz francesa Audrey Tautou, e contando com a participação de Samuel Le Bihan no papel de Löic Le Garrec, o objeto de desejo e admiração de Angélique (Audrey Tautou), o filme é uma verdadeira expressão de bom gosto cinematográfico.
A técnica utilizada na filmagem desse longa metragem é muito adequada à temática, pois na Erotomania há sempre dois pontos de vista bastante dicotômicos e difíceis de conciliar. Essa filmagem em duas ópticas, em dois tempos, como se a segunda parte do filme fosse um flashback da primeira torna bem claro o conflito central.
O OLHAR DE ANGÉLIQUE
“Je n’ai personne, vous seul (Não tenho ninguém, só você)”
#1 Recebeu uma rosa como prova indiscutível do amor de Löic.
#2 Presenteia o amado com uma rosa, mantendo com ele um vínculo afetico.
#3 Pinta um belo quadro para presentear Löic, no dia de seu aniversário. O doutor exibe o quadro em seu consultório como outro sinal de envolvimento.
#4 Löic arranjou um pretexto para ir sozinho ao congresso, para poder desfrutar da compania de Angélique.
#5 Quando se encontram no banheiro do evento, Löic propõe que Angélique vá beber com ele e a esposa qualquer dia, como um sinal de que estaria a desafiar sua mulher.
#6 Löic se oferece para deixar Angélique em casa, pois ele seria incapaz de permitir que a mulher amada fosse sozinha para casa.
#7 Löic posa para que Angélique o desenhe no parque, enquanto brinca com o filho de um amigo.
#8 Bate em sua porta para vê-la, desesperado de saudade.
#9 Deixa cair um lenço disfarçadamente, para que Angélique saiba que, apesar de estar saindo com a esposa, ele não a consegue esquecer.
“Merci por ce cadeau que tu m’as laissé de toi. Je te respire, je te sens, je te tiens près de moi. Je le garde a mon cou em souvenir du jour òu tu m’as déclaré ta flamme et ton amour. (Obrigada pelo presente. Eu respiro você, sinto você, tenho você preso a mim. Eu o uso no pescoço como lembrança do dia em que me declarou o seu amor eterno)”
#10 Nas palavras de Angélique, ao vê-la desacordada, “Ele me salvou. Ele me ressucitou. Ele me tirou do nada.”
#11 No hospital, após a tentativa de suicídio, Löic diz para Angélique procurá-lo quando estiver melhor. Para ela, o amado está tentando consertar os próprios erros, voltar atrás e se redimir.
“C’est comme si elle imaginait que je lui envoie des signes, des messages (É como se ela imaginasse que eu envio sinais, messages)”
#1 Ao se deparar com a notícia de que a mulher estava grávida, Löic comprou um buquê de rosas para presenteá-la. No caminho encontrou a vizinha e, irradiando felicidade, ofereceu-lhe uma rosa.
#2 Recebe uma rosa na manhã de seu aniversário com um bilhete com os seguintes dizeres: “Mon cœur est à toi pour toujours (Meu coração é seu para sempre)”. Ele então interpreta que o remetente do cartão é a sua esposa.
#3 Recebe um belo quadro com uma pintura sua no dia de seu aniversário, de uma paciente agradecida.
#4 Devido à gravidez, a esposa de Löic preferiu permanecer em casa para descansar. O Dr. Le Garrec comparece ao congresso sozinho.
#5 Ao descobrir que conversava com sua vizinha ele gentilmente a convidou para ir beber com eles qualquer dia.
#6 Mais uma gentileza com a vizinha, o Dr. Le Garrec oferece-lhe uma carona.
#7 Löic brinca distraidamente com o filho de um amigo, sem saber que estava sendo observado e desenhado.
#8 Ao perceber que não havia mais leite em sua casa e, estando a esposa grávida, ele bate à porta da vizinha para perguntar-lhe se haveria leite em sua casa.
#9 Löic nem percebeu que o lenço de sua esposa caiu. Da mesma forma, ao receber o bilhete de agradecimento, ficou sem compreender.
“Merci por ce cadeau que tu m’as laissé de toi. Je te respire, je te sens, je te tiens près de moi. Je le garde a mon cou em souvenir du jour òu tu m’as déclaré ta flamme et ton amour. (Obrigada pelo presente. Eu respiro você, sinto você, tenho você preso a mim. Eu o uso no pescoço como lembrança do dia em que me declarou o seu amor eterno)”
#10 Como médico, Löic realizou um procedimento de emergência com o objetivo de salvar a vida de Angélique.
#11 Mais uma gentileza do Dr. Le Garrec é mal compreendida por Angélique.
No hospital, após a tentativa de suicídio, Löic diz para Angélique procurá-lo quando estiver melhor. Para ela, o amado está tentando consertar os próprios erros, voltar atrás e se redimir.
TRANSTORNO DELIRANTE PERSISTENTE (F22)
Categoria que reúne as entidades denominadas por Kraeplin como paranoia (para: ao lado de; noos: conhecimento) e parafrenia (frenos: alma), quadros pertencentes ao espectro da esquizofrenia (as psicoses) mas que, diferentemente desta, não apresentam deterioração ou desestruturação psíquica grave.
Esse transtorno tem como principal característica a presença de delírios não-bizarros (em contraposição aos delírios esquizofrênicos), sistematizados, bem estruturados e cujo conteúdo é passível de realização. No caso de Angélique, vemos que seria perfeitamente possível que o Dr. Le Garrec se apaixonasse por ela e com ela vivesse uma relação extraconjugal.
Para se fechar o diagnóstico de Transtorno Delirante Persistente o paciente nunca deve ter preenchido diagnóstico de Esquizofrenia (F20) e devem ser excluídas causas orgânicas, como abuso ou abstinência de substâncias ou outras patologias.
De acordo com a CID10, o transtorno (os delírios) devem estar presentes há pelo menos 3 meses (mais de um mês segundo o DSM-IV). Os transtornos delirantes persistentes tem início um pouco mais tardio do que a Esquizofrenia, que tem pico de incidência entre os 15 e 25 anos de idade, sendo sua incidência maior na meia idade.
Há vários subtipos de Transtornos Delirantes Persistentes, de acordo com o conteúdo predominante das ideias delirantes do paciente, quais sejam: de grandeza, de ciúme, persecutórios, erótico (Erotomania ou Síndrome de Clérembaut), somático, misto e não especificado.
SÍNDROME DE CLÉREMBAUT
A erotomania consiste num delírio em cujo conteúdo a pessoa é amada por uma personalidade de destaque na sociedade que, de maneira geral, nunca teve nenhum contato mais próximo com o paciente.
Esses pacientes interpretam sinais mínimos como sendo claramente reveladores de uma paixão avassaladora. No caso do filme em questão, o sinal foi a entrega de uma rosa a Angélique que, sem conhecer o verdadeiro motivo dessa atitude, viu-se no centro da atenção de Löic.
O delírio é tão bem estruturado e coerente que, ao longo do filme, Angélique consegue justificar cada um dos desencontros com o seu amado:
I) -C'est un peu délicat, en ce moment. Ils connaissent tous très bien sa femme, ici.
-Sa femme? Parce qu'en plus il est marié?
-A une avocate mais ça marche plus. Il va la quitter.
"Nessa cena Angélique justifica que se trata de uma situação complicada, uma vez que todos conhecem a esposa de Löic. Fala também que ele irá deixá-la.
II) -Et toi, t'arrives à supporter ça?
-C'est pas évident pour lui non plus.
"Angélique justifica o fato de ter de suportar a ausência de Löic, pois é uma situação complicada para ele também."
III) -Mais, attends, Angélique! Elle est enceinte d'au moins cinq mois!
-Ce bébé, elle l'a fait pour le piéger! T'as pas vu son cinéma avec son gros ventre? Elle fait tout pour l'empècher de partir. S'il y avait pas de bébé il l'aurait quittée depuis longtemps.
" Angélique afirma que, se a esposa de Löic não estivesse grávida, fato este que, segundo ela, trata-se de uma jogada para mantê-lo preso, ele já a teria deixado. Ela também se sente agredida psicologicamente pela visão da barriga volumosa da esposa de seu amado."
TRATAMENTO
Tidos como excêntricos apenas, pacientes com trnstornos delirantes persistentes raramente procuram tratamento médico. São mais comumente postos em contato com um psiquiatra quando seu transtorno gera problemas jurídicos ou legais (a decepção proporcionada pelo encontro entre Angélique, cheia de expectativas, e Löic que, sentindo-se extremamente pressionado, a confronta negando que os dois possam ficar juntos, leva à ocorrência de um crime passional, uma tentativa de homicídio).
Quando em tratamento, esses pacientes se beneficiam parcamente de farmacoterapia (esta à base de antipsicóticos). A hospitalização foi extremamente necessária, pois Angélique se tornou perigosa ao convívio social em função de seu delírio; outra linha de atuação de que se deve lançar mão é a psicoterapia, principalmente para reabilitá-la socialmente.
A resistência de Angélique aos medicamentos e a adequação circunstancial à psicoterapia, afirmando ter juízo crítico de que não estava vivendo uma realidade só reforça a ausência de prejuízo nas demais esferas psíquicas, como a inteligência, por exemplo.
#A ELETROCONVULSOTERAPIA#
A prática de aplicar eletrochoques em pacientes psiquiátricos sempre foi muito explorada pelo cinema devido ao seu conteúdo dramático potencial.
Com o intuito de induzir, de forma controlada, convulsões generalizadas em pacientes graves (depressão grave, intratável farmacologicamente, com forte ideação suicida; mania intratável; catatonia; sintomas psicóticos), a eletroconvulsoterapia (ECT) é ainda uma forma de tratamento muito controversa, a despeito de toda a evolução que esta modalidade terapêutica vem sofrendo.
As cenas clássicas em que o paciente permanece acordado durante as sessões não correspondem à realidade técnica atual. Antes realizada com a injeção de fármacos e sem cuidados gerais com o paciente, a técnica evoluiu bastante e, hoje, inclui cuidados como: anestesia, sedação, oxigenação, monitoração eletrocardiográfica, eletroencefalográfica e oximetria de pulso, relaxamento muscular e controle de corrente elétrica, de forma a minimizar danos sobre o tecido cerebral.
A ECT teve sua utilização padronizada pelo CFM desde 2002 e é o método mais eficaz na depressão grave, demonstrando resposta favorável em 80% dos casos. A marcante evolução da técnica levou a uma drástica redução nos efeitos colaterais (além da dificuldade de discriminar se tais efeitos se devem à ECT ou à doença de base).
A observação de que pacientes esquizofrênicos portadores também de epilepsia melhoravam dos sintomas psicóticos após uma crise convulsiva foi o pontapé inicial para o desenvolvimento da ECT.
Angélique, contudo, não é a paciente ideal para a ECT, pois os transtornos delirantes crônicos são preditores de má resposta.
"Bien que mon amour soit fou, ma raison calme les trop vives douleurs de mon coeur en lui distant de patienter et d'espérer toujours..."
Une erotomane internée pendant plus de cinquante ans
("Embora o meu amor seja insano, a minha razão alivia a dor do meu coração dizendo-me para ser paciente e nunca perder a esperança..."
Uma erotomaníaca internada há mais de cinquenta anos.)
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