Monday, March 8, 2010

Girl, interrupted.

GIRL, INTERRUPTED.

INTRODUÇÃO

Baseado no livro homônimo escrito por Susanna Kaysen, esse filme de 1999 é um retrato emocionante do cotidiano de uma jovem portadora de Transtorno de Personalidade Emocionalmente Instável tipo Borderline (F60.31, segundo a décima edição da Classificação Internacional de Doenças).
O filme tem como protagonista a atriz Winona Ryder e conta com a excelente participação de Angelina Jolie vivendo uma sociopata.
Além disso, merecem destaque as atrizes Brittany Murphy, que vive a personagem Daisy Randone, uma jovem atormentada pela relação incestuosa com seu pai há décadas; Vanessa Redgrave, que interpreta a psiquiatra Dra. Wick; e a fantástica Whoopi Goldberg no papel da enfermeira Valerie.


"Have you ever confused a dream with life, or stolen something when you have the cash?
Have you ever been blue or thought your train moving while sitting still?
Maybe I was just crazy...
Maybe it was the 60s,
or maybe I was just a girl, interrupted!"

Essa é a introdução do filme. A partir dessa visão, a protagonista (vivida espetacularmente por Winona Ryder) inaugura a incrível jornada ao interior de seu problema.
Uma das cenas mais marcantes é a inicial, em que Susanna é levada às pressas numa ambulância após ter ingerido uma quantidade enorme de aspirinas e de vodca, numa tentativa desesperada de alívio para sua dor de cabeça.
Como é comum em pacientes Borderline, podemos observar nessa cena a tendência a comportamentos autodestrutivos e a impulsividade levadas ao extremo, pois, a princípio, a paciente desejava apenas aliviar a sua dor. No entanto, avaliou mal as consequências da ingestão exagerada de tantos medicamentos e bebida alcoólica.
O tratamento instituído é Valium (diazepam) 5mg intramuscular, que é o tratamento preconizado por Bialer (2002) e que tem por objetivo estabilizar o paciente através do controle de quaisquer alterações do humor, quadros de ansiedade intensa associada ou não a agitação psicomotora.
O diazepam é um medicamento da classe dos benzodiazepínicos, os bem conhecidos 'calmantes' ou ansiolíticos, cuja ação é a ocupação de sítios alostéricos situados nos receptores GABAérgicos, assim facilitando a ligação entre esses receptores e o neurotransmissor inibitório chamado GABA, daí a ação de controle da ansiedade.
Uma alternativa ao quadro de agitação psicomotora intensa é o Haldol (haloperidol) 2-5mg por via oral ou intramuscular. O haloperidol é um antipsicótico típico, de primeira geração, pertencente ao grupo das butirofenonas que atua principalmente através do bloqueio dos receptores dopaminérgicos D2. Sua atuação dá-se sobre as diversas vias dopaminérgicas do encéfalo, quais sejam: mesolímbica, a mais envolvida nos sintomas positivos da esquizofrenia, como os delírios e alucinações; a mesocortical; a nigroestriatal, envolvida na modulação dos movimentos; e a tuberoinfundibular, responsável pelo feedback negativo exercido pela dopamina sobre a secreção de prolactina.




“I feel like there are no bones in my hands”


Susanna se utiliza parcialmente desse delírio para justificar sua tentativa de suicídio.
A essa idéia errônea de que não se possui um órgão ou de que esse perdeu sua função dá-se o nome de Delírio Niilista, também chamado delírio de negação ou de Cotard. Considerado o extremo do delírio hipocondríaco, o delírio niilista pode associar-se a alucinações negativas, casos em que os pacientes chegam a negar os próprios sentidos e até a afirmarem já estarem mortos.
Merece também destaque, nessa mesma cena, a percepção errônea que Susanna tem acerca do tempo, afirmando sentir que o tempo pode ir para trás ou para frente e que ela não tem qualquer controle sobre o tempo. A essa percepção errônea da sequência cronológica que nos envolve dá-se o nome Discronia.


“You look normal”


Sentença proferida pelo motorista do táxi a Susanna quando de sua trajetória rumo à institucionalização. Aqui ele reproduz um estereótipo secularmente construído e bem estabelecido acerca do doente mental (mais particularmente aqueles que necessitam ser internados).
Essa frase resume toda a ideia que ainda circula entre boa parte de nossos concidadãos: de que os institucionalizáveis são apenas os visivelmente loucos, os muito alterados. No entanto, e esse é um dos motivos pelos quais no Brasil e, particularmente no Ceará, o número de “casas de repouso” é limitado, a Reforma Psiquiátrica vem tentando desestigmatizar o doente mental, sem retirá-lo do convívio social ou, quando retirando, tentando reintegrá-lo o mais brevemente possível.
Críticas a esse fato se dão no sentido de que o tratamento humanizado do paciente psiquiátrico não necessariamente se opõe a institucionalização, principalmente quando essa se faz necessária (com indicações precisas como: depressão refratária com risco de suicídio; fase maníaca incontrolável; personalidades que ofereçam algum tipo de risco às pessoas do convívio do paciente, como é o caso de alguns psicopatas de difícil inserção social; pacientes agressivos; etc).
No caso de Susanna Kaysen, a principal indicação seria a tentativa de suicídio e as atitudes autodestrutivas, e não o diagnóstico de Transtorno de Personalidade Borderline per si.



                      

“Everyone here is fucking crazy”


 Durante sua internação no Hospital Psiquiátrico de Claymoore, Susanna entra em contato com várias outras pacientes, cada uma com um diagnóstico diferente e peculiar.
A primeira com quem ela entra em contato é Georgina Tuskin, internada com o diagnóstico de Pseudologia Fantástica (sic), que ela em seguida esclarece: sou uma mentirosa compulsiva (segundo a CID 10, podemos diagnosticá-la como sendo portadora de um Transtorno dos Hábitos e Impulsos, não especificado, F63.9).
Um comportamento compulsivo segue, em grande parte dos casos, a um ciclo vicioso de pensamentos de conteúdos obsessivos sobre os quais a paciente tem insight, ou seja, reconhece como absurdos e inadequados, contudo, sem ter o poder de controlá-los ou de inibi-los. A esses pensamentos associa-se grande ansiedade, esta sendo aliviada pelos atos compulsivos realizados em seguida. Caracteriza-se, então, os pensamentos obsessivos como a Fase de Intenção e os atos compulsivos como a Fase de Execução. Observa-se, portanto, uma falta de autonomia tanto sobre a ocorrência da obsessão quanto sobre o controle da compulsão.
O contato seguinte se dá de forma bastante impactante. Lisa Newport, uma paciente sociopata (de acordo com a CID 10, uma portadora de transtorno de Personalidade Dissocial, F60.2), apresenta-se como o maior desafio da clínica psiquiátrica. Bastante agressiva, manipuladora, intolerante a frustrações e facilmente irritável acaba se tornando um ponto de apoio para a protagonista durante a maior parte da trama. Em várias cenas percebe-se o quanto Lisa tem regalias no hospital, como por exemplo receber esmaltes e ter seu cigarro aceso por uma das enfermeiras. A personalidade de Lisa é bem abordada em duas cenas: a primeira, quando ela incita e instiga Daisy, expondo seus problemas, o que acaba levando-a a cometer suicídio; a segunda quando Susanna tem a sua mão machucada por uma pesada porta de ferro e Lisa não expressa nenhuma emoção ao ver a "amiga" sofrer.
Daisy Randone, a personagem mais reclusa, tem história de relações sexuais incestuosas com o pai (não usarei o termo abuso sexual, pois a narração deixa a entender que há permissividade por parte de Daisy), anorexia (nunca come com as outras pacientes e esconde o alimento que recebe, o que, aliás é uma característica dos pacientes portadores de transtornos alimentares, que preferem se alimentar sozinhos, pois o ato de comer vem carregado de um forte conteúdo emocional e de ansiedade), preferência alimentar patológica por frango e constipação crônica.
Polly Clark é uma mulher com o rosto desfigurado desde a infância, quando se banhou em gasolina e ateou fogo sobre a própria pele quando soube que não poderia mais criar seu cachorrinho por ser alérgica ao pêlo desse animal. Desde então, apresenta um comportamento pueril e uma marcante regressão psicológica, ainda se comportando como uma criança.


"I´m ambivalent"

O psiquiatra se recusa a falar do diagnóstico de Susanna na frente dela, afirmando que ela só iria piorar de seu quadro.
Contudo, sabe-se que uma parte importante da terapia está na compreensão, por parte do paciente, da sua condição. A própria Susanna, em uma cena posterior comenta isso, afirmando: Como posso me curar se não compreendo minha doença?
A descrição da personalidade Borderline no filme é a seguinte: instabilidade da autoimagem, dos relacionamentos e do humor, incerteza sobre metas, compulsão por atividades autodestrutivas como o sexo casual. Costuma-se observar também atitudes antissociais e pessimistas.


“You´re hurting everyone around you”


O impacto de um transtorno de personalidade recai principalmente sobre as pessoas do convívio do paciente.
Os pacientes Borderline possuem uma instabilidade afetiva com consequente reatividade acentuada do humor, ou seja, são extremamente sensíveis aos mínimos estímulos, a eles então reagindo de forma desproporcionalmente agressiva, temerosa ou desesperançosa. Esse fato, por si só torna o convívio com um Borderline difícil. Some-se a isso o fato de que a maioria das pessoas desconhece esse transtorno ou, quando conhece, não o compreende de forma ampla, percebemos então que as relações interpessoais tornam-se quase um desafio a esses pacientes, que estão o tempo todo lutando contra si mesmos e contra as ideias erroneas e o preconceito das pessoas ao seu redor.




“I have friends here”


A ligação existente entre as personagens Susanna e Lisa baseia-se em parte, na teoria dos contrários de Platão.
Essa teoria afirma que cada coisa (incluindo as pessoas) possui um contrário mas tende a negá-lo. Lisa opõe-se à Susanna por ser desinibida, provocativa, manipuladora, sempre se colocando ativamente em relação às outras pacientes. Lisa expõe a todas as pacientes percepções perturbadoras sobre cada uma delas, chegando a ser indiferente perante o sofrimento. Consegue, contudo, ser leal a Susanna quando esta tem um encontro com o namorado no hospital.
Susanna se coloca, durante a maior parte do filme, em posição de extrema dependência, tanto em relação aos pais quanto em relação à Lisa (substituição) e, de certa forma, sente-se protegida por ela.
Mas as semelhanças entre ambas são mais marcantes que as diferenças. Elas são facilmente irritáveis, não toleram contrariedades, possuem tendências a manter relações fugazes e enfrentam profundos sentimentos de vazio. Seria como se Susanna tentasse preencher o seu vazio com o vazio de Lisa.




“How we hurt the outside trying to kill what´s inside”


O objetivo é o controle!
A abordagem da Dra. Wick é crucial para a melhora de Susanna. Ela consegue intrigar a personagem a ponto da mesma parar de se opor à terapia e decidir, sozinha, pela recuperação. Apesar de deter o conhecimento e as técnicas psicoterápicas, o profissional nada pode contra alguém que não deseja recuperar-se.
A psiquiatra conseguiu estabelecer um boa relação com a paciente, baseada em confiança e apoio, dois alicerces importantes para a boa realização da terapia.



“Declared healthy and sent back into the world. My final diagnosis: a recovered borderline. What that means I still don´t know. Was I ever crazy? Maybe. Or maybe life is. Crazy isn´t being broken or swallow a dark secret. It´s you or me... amplified! If you ever told a lie and enjoyed it, if you ever wished you could be a child forever... They were not perfect but they were my friends!”

Um transtorno de personalidade pode ser compreendido como um conjunto de características que definem o indivíduo, a persona.
Segundo Sigmund Freud, a personalidade é uma esfera que se forma bastante precocemente na vida do indivíduo, já estando formada em torno dos 5 anos de idade. Jung afirma, no entanto, que o período crucial para se estabelecer a personalidade é a meia idade.
Embora haja divergências entre esses teóricos de importância inquestionável o fato é que a Personalidade acompanha o ser humano por toda a sua trajetória e, à medida que o tempo passa, torna-se cada vez menos complacente e menos modificável. Pensando de maneira bem simplista, se a personalidade define o indivíduo, modificá-la seria criar um novo ser sobre o arcabouço vazio do que um dia foi uma pessoa, incutindo a esta novas características.
A partir do exposto, não é possível curar um transtorno de personalidade, uma vez que tais características constituem o cerne sobre o qual se estruturou toda uma vida. Contudo, é perfeitamente possível para uma paciente Borderline, a partir da compreensão de sua doença e de um tratamento adequado (psicoterapia associada ou não a medicamentos) conviver bem consigo mesma e com os seus amigos e familiares.
É necessário ressaltar que o paciente deverá se dispor à constante terapia (‘para o resto da vida’). Mas se pararmos para pensar, essa terapia é apenas mais uma forma de autocuidado, como o são os hábitos de higiene, que executamos todos os dias, e executaremos pelo resto da vida.



Texto de responsabilidade total de Natália Suellen Braga da Silva.


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