INTRODUÇÃO
Baseado no livro homônimo escrito por Susanna Kaysen, esse filme de 1999 é um retrato emocionante do cotidiano de uma jovem portadora de Transtorno de Personalidade Emocionalmente Instável tipo Borderline (F60.31, segundo a décima edição da Classificação Internacional de Doenças). O filme tem como protagonista a atriz Winona Ryder e conta com a excelente participação de Angelina Jolie vivendo uma sociopata, papel esse que rendeu à Angelina Jolie o único Oscar de sua carreira até agora.
Além disso, merecem destaque as atrizes Brittany Murphy, que vive a personagem Daisy Randone, uma jovem atormentada pela relação incestuosa com seu pai há anos; Vanessa Redgrave, que interpreta a psiquiatra Dra. Wick; e a fantástica Whoopi Goldberg no papel da enfermeira Valerie.
De extrema importância tanto no livro quanto no filme, está Georgina Tuskin, interpretada por Clea Duvall. Georgina, durante boa parte da trama, fará parte da rede de apoio de Susanna no Hospital Psiquiátrico McLean.
Essa é a introdução do filme. A partir dessa visão, a protagonista (vivida espetacularmente por Winona Ryder) inaugura a incrível jornada ao interior de seu problema, o ainda desconhecido e misterioso transtorno de personalidade que vai determinar sua conduta ao longo de todo o filme.
Uma das cenas mais marcantes é a inicial, em que Susanna é levada às pressas numa ambulância após ter ingerido uma quantidade enorme de aspirinas e de vodca, numa tentativa desesperada de alívio para sua dor de cabeça. No entanto, percebe-se aqui uma nuance que a distingue de um suicida típico: Susanna não se coloca num local indisponível, mas, pelo contrário, ela sai de casa, onde não havia ninguém, para um supermercado onde pôde ser encontrada e salva.
A cena descrita mostra um aspecto comum em pacientes portadores do Transtorno de Personalidade Limítrofe (Borderline), a tendência a comportamentos autodestrutivos e a impulsividade levadas ao extremo, pois, a princípio, a paciente desejava apenas aliviar a sua dor. No entanto, avaliou mal as consequências da ingestão exagerada de tantos medicamentos e bebida alcoólica.
O tratamento instituído é Valium (diazepam) 5mg intramuscular, que é o tratamento preconizado por Bialer (2002) e que tem por objetivo estabilizar o paciente através do controle de quaisquer alterações do humor, quadros de ansiedade intensa associada ou não a agitação psicomotora. O diazepam é um medicamento da classe dos benzodiazepínicos, os bem conhecidos 'calmantes' ou ansiolíticos, cuja ação é a ocupação de sítios alostéricos situados nos receptores GABAérgicos, assim facilitando a ligação entre esses receptores e o neurotransmissor inibitório chamado GABA, daí a ação de controle da ansiedade.
Uma alternativa ao quadro de agitação psicomotora intensa é o Haldol (haloperidol) 2-5mg por via oral ou intramuscular. O haloperidol é um antipsicótico típico, de primeira geração, pertencente ao grupo das butirofenonas que atua principalmente através do bloqueio dos receptores dopaminérgicos do tipo D2. Sua atuação dá-se sobre as diversas vias dopaminérgicas do encéfalo, quais sejam: mesolímbica, a mais envolvida nos sintomas positivos da esquizofrenia, como os delírios e alucinações; a mesocortical; a nigroestriatal, envolvida na modulação dos movimentos; e a tuberoinfundibular, responsável pelo feedback negativo exercido pela dopamina sobre a secreção de prolactina. O exato mecanismo segundo o qual o Haloperidol atua controlando a agitação psicomotora permanece obscuro. No entanto, a experiência demonstra uma eficácia muito grande desse medicamento nesses casos.
Uma alternativa ao quadro de agitação psicomotora intensa é o Haldol (haloperidol) 2-5mg por via oral ou intramuscular. O haloperidol é um antipsicótico típico, de primeira geração, pertencente ao grupo das butirofenonas que atua principalmente através do bloqueio dos receptores dopaminérgicos do tipo D2. Sua atuação dá-se sobre as diversas vias dopaminérgicas do encéfalo, quais sejam: mesolímbica, a mais envolvida nos sintomas positivos da esquizofrenia, como os delírios e alucinações; a mesocortical; a nigroestriatal, envolvida na modulação dos movimentos; e a tuberoinfundibular, responsável pelo feedback negativo exercido pela dopamina sobre a secreção de prolactina. O exato mecanismo segundo o qual o Haloperidol atua controlando a agitação psicomotora permanece obscuro. No entanto, a experiência demonstra uma eficácia muito grande desse medicamento nesses casos.
“I feel like there are no bones in my hands”
Susanna se utiliza parcialmente desse delírio para justificar sua tentativa de suicídio, de acordo com o que se mostra no filme.
A essa ideia errônea de que não se possui um órgão ou de que esse perdeu sua função dá-se o nome de Delírio Niilista, também chamado delírio de negação ou de Cotard. Considerado o extremo do delírio hipocondríaco, o delírio niilista pode associar-se a alucinações negativas, casos em que os pacientes chegam a negar os próprios sentidos e até a afirmarem já estarem mortos.
Merece também destaque, nessa mesma cena, a percepção errônea que Susanna tem acerca do tempo, afirmando sentir que o tempo pode ir para trás ou para frente e que ela não tem qualquer controle sobre o tempo. A essa percepção errônea da sequência cronológica que nos envolve dá-se o nome Discronia.
“You look normal”
Sentença proferida pelo motorista do táxi a Susanna quando de sua trajetória rumo à institucionalização. Aqui ele reproduz um estereótipo secularmente construído e bem estabelecido acerca do doente mental (mais particularmente aqueles que necessitam ser internados).
Essa frase resume toda a ideia que ainda circula entre boa parte de nossos concidadãos: de que os institucionalizáveis são apenas os visivelmente loucos, os muito alterados. No entanto, e esse é um dos motivos pelos quais no Brasil e, particularmente no Ceará, o número de “casas de repouso” é limitado, a Reforma Psiquiátrica vem tentando desestigmatizar o doente mental, sem retirá-lo do convívio social ou, quando o tem que retirar, tentando reintegrá-lo o mais brevemente possível, restituindo o máximo de sua funcionalidade inicial.
Críticas a esse fato se dão no sentido de que o tratamento humanizado do paciente psiquiátrico não necessariamente se opõe a institucionalização, principalmente quando essa se faz necessária (com indicações precisas como: depressão refratária com risco de suicídio; fase maníaca incontrolável; personalidades que ofereçam algum tipo de risco às pessoas do convívio do paciente, como é o caso de alguns psicopatas de difícil inserção social; pacientes agressivos; etc).
No caso de Susanna Kaysen, a principal indicação seria a tentativa de suicídio e as atitudes autodestrutivas, e não o diagnóstico de Transtorno de Personalidade Borderline per si.
Contudo, devido à baixa aceitação por parte das famílias de um tratamento baseado na institucionalização (internação), é ainda preciso uma longa luta no sentido de desconstruir a imagem do Doente Mental. Trata-se de uma via de mão dupla: ser internado significa ser tachado de louco e, ao contrário de se pensar que a internação tem por função recuperar e reintegrar o paciente na melhor de sua capacidade, pensa-se que se está decretando sua sentença de incurável. Por outro modo, pensa-se que a internação e o convívio com outros pacientes acaba piorando o quadro, devido ao convívio com portadores de doenças mais graves.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o conceito (utópico) de saúde é o de “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças”. Segundo o conceito elaborado pela OMS, teríamos que admitir que ninguém escaparia ao rótulo de ‘doente’, pois para tanto, tal sujeito precisaria ter condição social favorável e ausência de conflitos psicológicos.
Em saúde mental, o panorama é bem mais difícil de ser traçado. Um infartado tem uma área delimitada de lesão cardíaca e isso é bem demonstrado em exames complementares tais como eletrocardiograma e cateterismo. No entanto, quando a mente adoece, não há exames que comprovem a sua patologia, e isso se agrava quando pensamos que a saúde mental funciona com uma noção de espectro, ou seja, existem vários graus de comprometimento e uma tênue e quase inexistente linha de separação entre o normal e o patológico. Um texto de referência para essa discussão longe de ser concluída é o do autor francês Georges Canguillem, que considera vários pontos de vista para considerar a normalidade ou não. Citemo-lo rapidamente:
1) Normalidade como ausência de doença: mais válido para outros ramos da Medicina que não a saúde mental, cujo órgão-alvo esteja bem delimitado e cuja função e integridade sejam facilmente demonstradas pelo exame clínico ou por meio de exames complementares.
2) Normalidade ideal: depende diretamente do que uma sociedade considera ‘normal’. Como exemplo drástico podemos citar a execução sumária dos doentes mentais durante o regime nazista, baseado unicamente no que uma cultura dominante estipulou como padrão almejável.
3) Normalidade estatística: a mais usada na Medicina, utiliza-se de vários estudos realizados ao longo do tempo para delimitar valores numa curva de Gauss que definam quem é normal e quem destoa desse conceito. Esse modelo torna-se falho, pois se baseia no conceito de ‘mediana estatística’, ou seja, é normal quem estiver próximo do valor médio obtido. Um exemplo que derruba esse conceito seria medir o Quociente de Inteligência (QI) de uma população e tachar de anormais da mesma forma os que destoassem da média obtida, tanto para menos quanto para mais.
4) Normalidade como bem-estar: aqui entra a escolha da Organização Mundial de Saúde para definir o normal e o patológico em torno de doença ou saúde. Nesse modelo a doença aparece como tudo aquilo que causa mal estar e interfere com o bom funcionamento do indivíduo. Teoricamente é o modelo mais coerente, mas as críticas surgem devido à dificuldade de se conceituar bem estar e se esse bem estar precisa ser ‘completo’.
5) Normalidade funcional: de acordo com esse conceito a doença só se conceitua quando perturba o funcionamento do indivíduo, tanto profissional quanto social, causando sofrimento no mesmo. Mas deixa de fora os pequenos distúrbios, que causam perturbação mínima ou ausente sobre o funcionamento social do paciente.
6) Normalidade como processo: leva em conta as etapas da vida que trazem conflitos psíquicos e desestruturações e considera normal a superação dos conflitos envolvidos em cada um dessas etapas (grandes transições, como infância-adolescência; meia idade- terceira idade), e não a sua persistência.
7) Normalidade Subjetiva: considera patológico aquilo que o paciente sente como tal. Necessita, portanto, que a capacidade de juízo crítico do paciente esteja preservada, o que não ocorre com os psicóticos.
8) Normalidade como Liberdade: fornecidos pelos existencialistas, esse conceito prescinde de uma liberdade sobre a própria existência e sobre o próprio destino. Novamente, deixa de fora os pacientes cujas doenças não os afetam de forma tão grave.
9) Normalidade Operacional: define o normal e o patológico e trabalha a partir dessas decisões prévias, pré-concebidas e arbitrárias.
Há uma frase interessante em Medicina que afirma que quando há muitos termos
para descrever a mesma doença, nenhum deles é adequado. Em saúde mental, que
é um ramo que ainda engatinha, apesar dos avanços memoráveis, isso é
especialmente aplicável.
Há uma frase interessante em Medicina que afirma que quando há muitos termos
para descrever a mesma doença, nenhum deles é adequado. Em saúde mental, que
é um ramo que ainda engatinha, apesar dos avanços memoráveis, isso é
especialmente aplicável.
“Everyone here is fucking crazy”
Durante sua internação no Hospital Psiquiátrico de Claymoore (no livro que inspirou a obra, o hospital se chama McLean), Susanna entra em contato com várias outras pacientes, cada uma com um diagnóstico diferente e peculiar.
A primeira com quem ela entra em contato é Georgina Tuskin, internada com o diagnóstico de Pseudologia Fantástica (sic), que consiste no relato falso e incontrolado de histórias fantasiadas nas quais o próprio sujeito passa a acreditar. Em seguida, ela melhor esclarece: sou uma mentirosa compulsiva (segundo a CID 10, podemos diagnosticá-la como sendo portadora de um Transtorno dos Hábitos e Impulsos, não especificado, F63.9).
Um comportamento compulsivo segue, em grande parte dos casos, a um ciclo vicioso de pensamentos de conteúdos obsessivos sobre os quais a paciente tem insight, ou seja, reconhece como absurdos e inadequados, contudo, sem ter o poder de controlá-los ou de inibi-los. A esses pensamentos associa-se grande ansiedade, esta sendo aliviada pelos atos compulsivos realizados em seguida. Caracteriza-se, então, os pensamentos obsessivos como a Fase de Intenção e os atos compulsivos como a Fase de Execução. Observa-se, portanto, uma falta de autonomia tanto sobre a ocorrência da obsessão quanto sobre o controle da compulsão.
O contato seguinte se dá de forma bastante impactante. Lisa Newport, uma paciente sociopata (de acordo com a CID 10, uma portadora de transtorno de Personalidade Dissocial, F60.2), apresenta-se como o maior desafio da clínica psiquiátrica. Bastante agressiva, manipuladora, intolerante a frustrações e facilmente irritável acaba se tornando um ponto de apoio para a protagonista durante a maior parte da trama. Em várias cenas percebe-se o quanto Lisa tem regalias no hospital, como por exemplo receber esmaltes e ter seu cigarro aceso por uma das enfermeiras. A personalidade de Lisa é bem abordada em duas cenas: a primeira, quando ela incita e instiga Daisy, expondo seus problemas, o que acaba levando-a a cometer suicídio; a segunda quando Susanna tem a sua mão machucada por uma pesada porta de ferro e Lisa não expressa nenhuma emoção ao ver a "amiga" sofrer. Contudo, Lisa é uma caricatura projetada para o cinema, pois a personagem original, descrita no livro, é bem mais dócil e encantadora que a agressiva Lisa cinematográfica. Em uma das páginas, Susanna afirma, sobre a saudade que sentia cada vez que ela fugia: Lisa sempre nos fazia rir.
Daisy Randone, a personagem mais reclusa, tem história de relações sexuais incestuosas com o pai (não usarei o termo abuso sexual, pois a narração deixa a entender que há permissividade por parte de Daisy), anorexia (nunca come com as outras pacientes e esconde o alimento que recebe, o que, aliás é uma característica dos pacientes portadores de transtornos alimentares, que preferem se alimentar sozinhos, pois o ato de comer vem carregado de um forte conteúdo emocional e de ansiedade), preferência alimentar patológica por frango e constipação crônica. No decorrer da trama, Daisy comete suicídio. No livro, Susanna questiona se o suicídio de Daisy seria uma morte prematura. Para isso, ela argumenta: ‘E se ela tivesse ficado sentada ali por apenas trinta anos e tivesse se matado aos quarenta e nove e não aos dezenove? Ainda assim sua morte teria sido prematura?’.
Polly Clark é uma mulher com o rosto desfigurado desde a infância, quando se banhou em gasolina e ateou fogo sobre a própria pele quando soube que não poderia mais criar seu cachorrinho por ser alérgica ao pêlo desse animal. Desde então, apresenta um comportamento pueril e uma marcante regressão psicológica, ainda se comportando como uma criança. Esse comportamento pueril deve-se à Esquizofrenia Hebefrênica (F20.1), diagnóstico que fica claro apenas no livro. Trata-se de uma forma mais rara de Esquizofrenia, caracterizada basicamente por alterações na esfera da afetividade, com um hipodesenvolvimento (puerilidade, infantilidade, comportamento extremamente regredido), além da existência de maneirismos, que consistem em anormalidade nos movimentos expressivos, sendo esses bizarros, despropositados ou inadequados. Tem um prognóstico pior dentre os subtipos de Esquizofrenia e responde mal ao tratamento com antipsicóticos por apresentar muitos sintomas negativos (embotamento afetivo e perda da vontade).A primeira com quem ela entra em contato é Georgina Tuskin, internada com o diagnóstico de Pseudologia Fantástica (sic), que consiste no relato falso e incontrolado de histórias fantasiadas nas quais o próprio sujeito passa a acreditar. Em seguida, ela melhor esclarece: sou uma mentirosa compulsiva (segundo a CID 10, podemos diagnosticá-la como sendo portadora de um Transtorno dos Hábitos e Impulsos, não especificado, F63.9).
Um comportamento compulsivo segue, em grande parte dos casos, a um ciclo vicioso de pensamentos de conteúdos obsessivos sobre os quais a paciente tem insight, ou seja, reconhece como absurdos e inadequados, contudo, sem ter o poder de controlá-los ou de inibi-los. A esses pensamentos associa-se grande ansiedade, esta sendo aliviada pelos atos compulsivos realizados em seguida. Caracteriza-se, então, os pensamentos obsessivos como a Fase de Intenção e os atos compulsivos como a Fase de Execução. Observa-se, portanto, uma falta de autonomia tanto sobre a ocorrência da obsessão quanto sobre o controle da compulsão.
O contato seguinte se dá de forma bastante impactante. Lisa Newport, uma paciente sociopata (de acordo com a CID 10, uma portadora de transtorno de Personalidade Dissocial, F60.2), apresenta-se como o maior desafio da clínica psiquiátrica. Bastante agressiva, manipuladora, intolerante a frustrações e facilmente irritável acaba se tornando um ponto de apoio para a protagonista durante a maior parte da trama. Em várias cenas percebe-se o quanto Lisa tem regalias no hospital, como por exemplo receber esmaltes e ter seu cigarro aceso por uma das enfermeiras. A personalidade de Lisa é bem abordada em duas cenas: a primeira, quando ela incita e instiga Daisy, expondo seus problemas, o que acaba levando-a a cometer suicídio; a segunda quando Susanna tem a sua mão machucada por uma pesada porta de ferro e Lisa não expressa nenhuma emoção ao ver a "amiga" sofrer. Contudo, Lisa é uma caricatura projetada para o cinema, pois a personagem original, descrita no livro, é bem mais dócil e encantadora que a agressiva Lisa cinematográfica. Em uma das páginas, Susanna afirma, sobre a saudade que sentia cada vez que ela fugia: Lisa sempre nos fazia rir.
Daisy Randone, a personagem mais reclusa, tem história de relações sexuais incestuosas com o pai (não usarei o termo abuso sexual, pois a narração deixa a entender que há permissividade por parte de Daisy), anorexia (nunca come com as outras pacientes e esconde o alimento que recebe, o que, aliás é uma característica dos pacientes portadores de transtornos alimentares, que preferem se alimentar sozinhos, pois o ato de comer vem carregado de um forte conteúdo emocional e de ansiedade), preferência alimentar patológica por frango e constipação crônica. No decorrer da trama, Daisy comete suicídio. No livro, Susanna questiona se o suicídio de Daisy seria uma morte prematura. Para isso, ela argumenta: ‘E se ela tivesse ficado sentada ali por apenas trinta anos e tivesse se matado aos quarenta e nove e não aos dezenove? Ainda assim sua morte teria sido prematura?’.
"I´m ambivalent"
O psiquiatra se recusa a falar do diagnóstico de Susanna na frente dela, afirmando que ela só iria piorar de seu quadro.
Contudo, sabe-se que uma parte importante da terapia está na compreensão, por parte do paciente, da sua condição. A própria Susanna, em uma cena posterior comenta isso, questionando: Como posso me curar se não compreendo minha doença?
A descrição da personalidade Borderline no filme é a seguinte: instabilidade da autoimagem, dos relacionamentos e do humor, incerteza sobre metas, compulsão por atividades autodestrutivas como o sexo casual. Costuma-se observar também atitudes antissociais e pessimistas. No entanto, ninguém se prestou a explicar isso à paciente, o que significava e qual o impacto que cada um desses aspectos teria em sua vida pessoal e profissional. No livro, esse aspecto levou Susanna a procurar, por conta própria, no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), quando ela nos revela: “Eram essas as acusações que me faziam. Só fui lê-las vinte e cinco anos depois. Na época, disseram-me que eu tinha um ‘distúrbio da personalidade’”.
“You´re hurting everyone around you”
O impacto de um transtorno de personalidade recai principalmente sobre as pessoas do convívio do paciente.
Os pacientes Borderline possuem uma instabilidade afetiva com consequente reatividade acentuada do humor, ou seja, são extremamente sensíveis aos mínimos estímulos, a eles então reagindo de forma desproporcionalmente agressiva, temerosa ou desesperançosa. Esse fato, por si só torna o convívio com um Borderline difícil. Some-se a isso o fato de que a maioria das pessoas desconhece esse transtorno ou, quando conhece, não o compreende de forma ampla, percebemos então que as relações interpessoais tornam-se quase um desafio a esses pacientes, que estão o tempo todo lutando contra si mesmos e contra as ideias errôneas e o preconceito das pessoas ao seu redor.
Personalidade pode ser compreendida como o conjunto de características psicológicas que influenciam ou determinam o funcionamento social de um indivíduo. Assim sendo, o traço dominante de personalidade leva a comportamentos típicos e, de certa forma, esperados. Tomando por exemplo o Transtorno de Personalidade Emocionalmente Instável tipo Borderline, espera-se uma resposta agressiva à mínima contrariedade sofrida por um paciente com esse diagnóstico.
“I have friends here”
A ligação existente entre as personagens Susanna e Lisa pode ser explicada, em parte, pela teoria dos contrários de Platão. Essa teoria afirma que cada coisa (incluindo as pessoas) possui um contrário, embora tenda a negá-lo. Lisa opõe-se à Susanna por ser desinibida, provocativa, manipuladora, sempre se posicionando ativamente em relação às outras pacientes. Lisa expõe a todas as pacientes percepções perturbadoras sobre cada uma delas, chegando a ser indiferente perante o sofrimento das companheiras de internamento. Consegue, contudo, ser leal a Susanna quando esta tem um encontro com o namorado no hospital e precisa de certo apoio.
Susanna se coloca, durante a maior parte do filme, em posição de extrema dependência, tanto em relação aos pais e ao terapeuta quanto em relação à Lisa (substituição) e, de certa forma, sente-se protegida por ela.
Mas as semelhanças entre ambas são mais marcantes que as diferenças. Elas são facilmente irritáveis, não toleram contrariedades, possuem tendências a manter relações fugazes, oscilando facilmente da idealização extrema à desvalorização, e enfrentam profundos sentimentos de vazio. A relação pode ser compreendida como se Susanna desejasse preencher o seu vazio com o vazio de Lisa.
“How we hurt the outside trying to kill what´s inside”
O comportamento auto-agressivo é muito explícito em pacientes borderline, manifestando-se principalmente na forma de escoriações, pancadas, desmaios propositais, ou outras manifestações do tipo.
As tentativas de suicídio frustradas recebem a denominação de Parassuicídio Manipulativo, pois não têm a intenção de ser eficazes, mas de chamar a atenção para si e para o problema que os atingem. Intencionam, também, mudar o foco do sofrimento do paciente, do psíquico para o físico, o que a própria Susanna explicita tanto no filme quanto no livro.
O objetivo é o controle!
A abordagem da Dra. Wick é crucial para a melhora de Susanna. Ela consegue intrigar a personagem a ponto da mesma parar de se opor à terapia e decidir, sozinha, pela recuperação. Apesar de deter o conhecimento e as técnicas psicoterápicas, o profissional nada pode contra alguém que não deseja recuperar-se.
A psiquiatra foi bem sucedida em estabelecer um boa relação com a paciente, baseada em confiança e apoio, dois alicerces essenciais para o progresso de qualquer terapia, em qualquer área da Medicina, inclusive.
“Declared healthy and sent back into the world. My final diagnosis: a recovered borderline. What that means I still don´t know. Was I ever crazy? Maybe. Or maybe life is. Crazy isn´t being broken or swallow a dark secret. It´s you or me... amplified! If you ever told a lie and enjoyed it, if you ever wished you could be a child forever... They were not perfect but they were my friends! There isn't a day my heart doesn't find them.”
Um transtorno de personalidade pode ser compreendido como um conjunto de características que definem o indivíduo, a persona.
Segundo Sigmund Freud, a personalidade é uma esfera que se forma bastante precocemente na vida do indivíduo, já estando formada em torno dos 5 anos de idade. Jung afirma, no entanto, que o período crucial para se estabelecer a personalidade é a meia idade.
Embora haja divergências entre esses teóricos de importância inquestionável o fato é que a Personalidade acompanha o ser humano por toda a sua trajetória e, à medida que o tempo passa, torna-se cada vez menos complacente e menos modificável. Pensando de maneira bem simplista, se a personalidade define o indivíduo, modificá-la seria criar um novo ser sobre o arcabouço vazio do que um dia foi uma pessoa, incutindo a esta novas características.
A partir do exposto, não é possível curar um transtorno de personalidade, uma vez que tais características constituem o cerne sobre o qual se estruturou toda uma vida. Contudo, é perfeitamente possível para uma paciente Borderline, a partir da compreensão de sua doença e de um tratamento adequado (psicoterapia associada ou não a medicamentos) conviver bem consigo mesma e com os seus amigos e familiares.
É necessário ressaltar que o paciente deverá se dispor à constante terapia (‘para o resto da vida’). Mas se pararmos para pensar, essa terapia é apenas mais uma forma de autocuidado, como o são os hábitos de higiene, que executamos todos os dias, e executaremos pelo resto da vida.
SOBRE SUSANNA KAYSEN
Susanna Kaysen é uma escritora americana de 61 anos. Sua obra de maior visibilidade foi o livro homônimo em que se baseou o filme em discussão, cujo título em português é “Moça, Interrompida”. Com essa publicação ela se tornou mundialmente famosa.
O título em inglês, “Girl, Interrupted”, traz um inteligente jogo de palavras que adianta o tema abordado, à maneira como Sófocles caracteristicamente trazia cenas que prenunciavam o desfecho da história. Como é de notório conhecimento, no idioma inglês os adjetivos precedem os substantivos. Contudo, Kaysen inverteu a ordem como um sinal de que, em sua mente, devido à sua doença, a ordem também se mostrava invertida. Para enfatizar a interrupção que a doença mental causou na sua rotina, ela usa uma vírgula desnecessária entre os dois verbetes do título.
Extremamente criativa, Susanna aborda a sua própria patologia mental de forma ousada e profunda, arriscando a sua sanidade na busca pela tentativa de compreender o que está a se passar nesse território delicado, misterioso e pouco conhecido pela ciência e muito especulado pelo senso comum que é a mente humana.
Questionadora, ela explora a dualidade entre mente e cérebro a partir da evolução dos estudos em neurociências e mostra boa compreensão acerca do funcionamento de circuitos cerebrais e neurotransmissores. Dotada também de uma veia irônica fina, de realce tênue, ela critica a tendência já crescente em direcionar o tratamento das doenças mentais unicamente pelo ponto de vista químico. Essa questão norteia importantes pontos de divergências entre dois ramos que deveriam seguir contíguos, que são a Psicologia e a Psiquiatria.
Durante a leitura de Moça, Interrompida percebe-se a perfeita lucidez da autora acerca do que se passa com sua saúde mental (ou com a falta dela). Em Psiquiatria/Psicologia damos a esse fato o termo “Insight”, que significa o grau de entendimento que o paciente apresenta acerca da própria condição de estar doente.
Por fim, vale ressaltar o fato de que o filme retirou muito da lucidez da autora, para que seu conteúdo se tornasse mais atrativo às telas e enfatizasse a doença mental. No livro, vemos a sanidade coexistindo com a patologia o tempo todo, e no meio da tempestade, encontramos Susanna Kaysen lidando como pode com essas duas pontas do fio tênue que norteia sua existência.
As obras literárias de Kaysen incluem os livros ASA, as I know him (1987), Far afield (1990), Girl, Interrupted (1993) e The camera my mother gave me (2001).
Em todas essas obras, Susanna incute sua característica mais marcante: a criatividade, a reflexão e o humor ácido. The camera my mother gave me, por exemplo, é uma discussão sobre um assunto delicado: uma doença vaginal adquirida por Susanna e sem tratamento na época. Sempre tocando em assuntos tidos como proibidos, ela vai ganhando notoriedade com sua forma peculiar de escrever e ser lida.
E, dessa forma peculiar, usando de muita criatividade, bom humor e perspicácia, Kaysen traduz um mundo que muitos ousam não tocar.
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